Essa pergunta tem pairado na mente de muitos
estudiosos e parece ser um grande enigma para um tipo de pensamento que exclui
outras referências, ou seja, um pensamento unilateral, que todos nós, homens e
mulheres em alguma medida possuímos e exercitamos diariamente.
Na mitologia grega podemos encontrar
resquícios de reconhecimento da força, do poder, sabedoria e equidade do
elemento feminino, como bem ilustra algumas alianças que Zeus, pai dos deuses e
dos homens realiza. Esta mitologia guarda uma forte referência do poder das
divindades masculinas, mas ainda preserva certo reconhecimento das potências
femininas e seus âmbitos de atuação.
Para se estabelecer como
o grande deus do Olimpo, Zeus faz várias
alianças com divindades femininas,vários casamentos. Uma das possibilidades de
considerar essas uniões é pensarmos nelas como metáforas poéticas que ainda
hoje tem um frescor para inspirar algumas reflexões. Para se firmar no Olimpo
como um grande organizador de uma nova ordem, Zeus terá que reconhecer o poder de
várias divindades femininas. Em algumas versões serão sete casamentos, em
outras quatro.
Um dos casamentos será com Eurynóme (filha de
Oceano), é a divindade que administra a Grande Partilha. É um feminino poderoso
que garante o partilhar. Dessa união nascem as três
Graças (Cárites): Aglaia, Eufrosina e Tália, que representam a graça exterior,
o encanto, a beleza, o reconhecimento e a gratidão, que alimentam o coração dos
deuses e dos homens. Com esta aliança Zeus apreende aspectos que Eurynóme
veicula. Quando o elemento masculino reconhece
que o feminino possui âmbitos de atuação, uma sabedoria e ampliação do
pensamento/ consciência pode surgir e determinados gestos de exclusão, rechaço
e aniquilamento podem ficar minimizados frente ao outro. Ao incluir Eurynóme em
suas relações, também inclui em seu repertório o que a deusa zela e advêm disso
frutos preciosos – as Graças.
A partir deste gesto, Zeus ganha novas
possibilidades de reger o mundo. Um de seus lemas será Partilhar é Unir, segundo a tradução e estudo do prof. Torrano,
na Teogonia de Hesíodo.
Ao incluir este tema já
não estamos mais numa referência unilateral de pensamento, de estar no mundo.
Gosto muito deste lema, pois nos lembra de que o partilhar faz parte do contexto da união.
Esta passagem mítica nos ensina que quando um
elemento reconhece o valor do outro e faz uma aliança com ele, abrem-se novas possibilidades,
novos paradigmas são possíveis e nova ordem pode ser instalada.
Quando destaco o reconhecimento de um elemento pelo outro me refiro tanto ao masculino reconhecer o feminino, quanto o feminino reconhecer o masculino, no que tange o espírito de agregação e equanimidade. Penso que esse é um grande desafio aos dias de hoje. Cada um de nós sofre as conseqüências da exclusão e do excluir.
As mulheres sofrem as conseqüências da
exclusão social, política, religiosa em vários países. Sofrem o não
reconhecimento de seu valor profissional; sofrem a brutalidade física e
psicológica. Os homens, aos excluírem o feminino, sofrem a falta de humanização
e podem se transformar em seres bestiais, sem a possibilidade de convivência e
diálogo com mulheres que possuem a sabedoria da memória das entranhas.
Miticamente falando, perdem a sabedoria de Zeus, que representa uma divindade
que traz uma nova ordem. Segundo esta linha de pensamento, sem uma nova ordem
podemos mergulhar no caos. As mulheres, por
outro lado, sabem o que é carregar o outro dentro de si, literalmente. São,
portanto, as portadoras desta centelha da inclusão. Esta centelha pode estar
adormecida e necessitando ser reconhecida.
Recentemente assisti um documentário de
Malala Yousafzai – uma ativista paquistanesa – que foi baleada pelo Talibã
porque defendeu o direito à educação e ganhou o premio Nobel da Paz, aos 17
anos, em 2014. Ela queria apenas que as crianças
tivessem o direito de estudar, saber ler e escrever, o que em seu país é
proibido. Em nome de uma religião, de um partido político, de uma ideologia
perversa, são praticados atos brutais onde milhares de mulheres ficam impossibilitadas
de serem vistas como humanas.
Essa exclusão provoca profundas e terríveis
conseqüências para ambos. O não reconhecimento dos direitos das mulheres pode
brutalizar os homens e despotencializar as mulheres. Ambos sofrem com o não reconhecimento de suas potências; ocorre uma
desunião interna e externa de aspectos fundamentais para o reconhecimento do
outro. Outro que é diferente e igual ao mesmo tempo. Diferente quanto às
particularidades e riqueza de cada gênero e igual porque pertencem a mesma
categoria: seres humanos, habitando o mesmo planeta.
Quando Zeus, o grande organizador de uma nova
ordem, reconhece Eurynóme – a Grande Partilha- está incorporando essa centelha
do feminino e disso resultam novos frutos. Novos frutos que não ameaçam seu
poder, mas trarão novo encanto à vida. Penso que o que as mulheres mais querem
é o resgate de sua soberania. O reconhecimento de seu valor, de sua humanidade,
de sua potência, de sua força, de sua sabedoria que vem das entranhas, que
precisa ser reconhecida e partilhada.
Partilha essa, como nos ensina o mito, pode unir e tornar as relações mais humanas e
equânimes, pode fertilizar nossos corações e agraciar nossa vida. Uma trilha
para os homens e mulheres do século XXI percorrerem. Como? Reconhecendo a
necessidade de incluir o outro.
Colaboração : Vera Lúcia Couto – psicoterapeuta de
orientação junguiana, especialista em psicologia clínica, CRP 06/10459, membro
fundador da Areté- centro de estudos helênicos-SP